O Oceano de Sofrimento
O resultado de todas as ações que praticamos forma a trama da nossa vida, como a de um tapete: cada fio, cada detalhe. Cada um de nós continua a tecer diferentes realidades físicas e ambientais, amarrando-nos mais fundo aos ciclos de sofrimento. Nossa experiência depende do nosso karma, que produz graus variados de enganos e ilusões. Se os venenos da mente são agudos, experimentamos uma realidade muito dolorosa, infernal. Se os venenos se reduzem, nossa realidade se torna menos severa, mais agradável.
O Buddha falou sobre sofrimento do mesmo modo que falaríamos sobre doença a uma pessoa enferma, simplesmente para ajudá-la a compreender que não está bem, que há algo de errado. Se não houvesse cura para o sofrimento, não haveria porque discuti-lo. Mas o fato de que a cura existe faz com que seja de capital importância reconhecermos o sofrimento como fundamental; podemos, assim, começar a encontrar essa cura.
Há três tipos de sofrimento. O primeiro é o sofrimento que se sobrepõe ao sofrimento. Uma coisa ruim acontece em cima de outra, e parece não haver justiça alguma no processo. Quando você pensa que a situação em que está não pode ficar pior, ela fica. Você perde dinheiro, depois um parente, depois a juventude — há inúmeras maneiras pelas quais sofremos. O segundo tipo é o sofrimento da mudança. Nada é confiável ou consistente. Por maior que seja a nossa esperança de ter uma base sólida sobre a qual nos apoiarmos, tudo aquilo com o que contamos sempre se corrói, criando grande doŲ. O terceiro é o sofrimento que tudo permeia. Da mesma forma que, quando você espreme uma semente de gergelim, constata que ela está permeada de óleo, pode parecer que a nossa vida seja feliz, mas, quando somos espremidos, sofremos. Tão certo quanto o fato de que nascemos é o fato de que iremos ficar doentes, envelhecer e morrer.
Dentro do samsara, há incontáveis seres cujo sofrimento é, de longe, maior do que o nosso. Noventa e cinco por cento deles experimentam uma realidade brutal. A vida de apenas cinco por cento — humanos, semideuses e deuses mundanos — é relativamente bem afortunada. Entretanto, nós humanos freqüentemente nos lamentamos da nossa existência, queixando-nos amargamente dos nossos terríveis problemas. Nunca nos sentiríamos assim se tivéssemos uma apreciação do grau tremendo de sofrimento que existe em outros reinos. A pior de todas as experiências humanas é ainda mil vezes mais tolerável do que aquilo que os seres de menor sofrimento nos reinos inferiores têm que suportar. Seu sofrimento é tão lancinante que mal podemos concebê-lo; sua duração é insondável. Para alguns seres nem mesmo a morte serve de escape, até que se passem centenas de milhares de anos, às vezes eras inteiras.
A maioria dos seres nesses reinos não dispõem de tempo para ajudar a si próprios. Seu sofrimento permanece tão intenso que não têm um momento, uma oportunidade, para meditar ou para examinar a si mesmos ou sua vida de um ângulo diferente. Outros seres, em reinos superiores, vivem embriagados de prazer. Um falso contentamento permite-lhes se assentar em um estado de inatividade. Quando sua longa vida inevitavelmente chega ao fim, experimentam terrível sofrimento, pois não usaram suas amplas oportunidades para criar condições para sua felicidade futura.
A idéia de que podemos vivenciar reinos de sofrimento que chamamos de infernos deixa muitas pessoas céticas ou enraivecidas. Elas não acreditam em inferno; pensam que este conceito não passa de uma tática que algumas religiões empregam para assustar e controlar as pessoas. Em certo sentido, é verdade que o inferno não existe. Se fizermos uso de toda a tecnologia do mundo para tentar chegar ao centro da Terra, nunca acharíamos o inferno. No entanto, muitos seres estão sofrendo no reino dos infernos neste exato momento.
O inferno é o reflexo dos enganos e fantasias da mente, dos pensamentos e intenções raivosos, e das palavras e ações nocivas que eles produzem. Se não forem controlados, não há como deixarmos de vivenciar o inferno. Os praticantes precisam ser cuidadosos. Alguns podem pensar, "Minha meditação é tão profunda que eu não tenho que me preocupar com o karma." Mas as repercussões das visões enganosas são infalíveis, e para se renascer no inferno não é preciso de muito engano.
Algumas pessoas experimentam o inferno mesmo enquanto contam com um corpo humano. Muitas delas ocupam nossos hospitais. Há pessoas que são atormentadas pela idéia de que alguém está tentando assassiná-las ou arrancar sua carne. Há algumas que têm a experiência de estar sendo comidas vivas ou estar presas em um incêndio. Poderíamos estar sentados no mesmo quarto que elas, e não enxergar nada do que sofrem. Ao mesmo tempo, podemos estar bem ao lado de um grande meditador que vivencia o céu, a terra pura, sem que nós mesmos enxerguemos isso.
O inferno e o céu, na verdade, não estão tão longe um do outro. Entender isso é um pouco capcioso, já que a experiência do céu é muito diferente da do inferno. Mas isso ganha sentido se considerarmos o exemplo de uma substância simples como a água. Para os humanos, a água é crucial para a manutenção da vida; para os peixes, é o seu meio ambiente; para os deuses mundanos, uma substância semelhante à ambrósia; para os fantasmas famintos, sangue e pus; para os seres dos infernos, lava derretida. Não é que a substância em si varie de um caso para outro, mas, sim, que se modifica a percepção e a experiência que seres diferentes têm dela. Da mesma forma que nossa visão se altera quando pomos óculos com graus diferentes, nossa experiência da realidade é inteiramente condicionada por nossa percepção, a qual é determinada pela extensão dos nossos enganos e fantasias.
Em escala cósmica, as experiências das seis classes de seres nos três reinos da existência (os reinos do desejo, da forma e da não-forma) — a existência cíclica em seu todo — constituem dramas coletivos que se desenrolam como expressão do karma grupal desses seres. Quando vemos um filme projetado numa tela, conferimos a ele uma certa medida de realidade, e por essa razão somos afetados por ele. Ficamos contrariados, radiantes, aterrorizados ou enraivecidos por aquilo que vemos. Não importa que conheçamos a origem do cinema ou compreendamos como ele funciona. Quando assistimos a um filme, ele nos modifica ao evocar determinados estados emocionais. Podemos dar um passo atrás e dizer que, em termos últimos, não há nada ali, é apenas um filme. Mas na maior parte do tempo permanecemos totalmente absorvidos por aquilo a que estamos assistindo. Se um grupo de pessoas se sentar diante da mesma tela de cinema, serão afetadas mais ou menos da mesma maneira. Uma comédia vai deixá-las alegres; um filme de terror irá amedrontá-las. Como seres humanos que compartilham uma realidade coletiva denominada reino do desejo, verificamos que os impulsos mais fortes em nossa mente são o desejo e o apego, e enxergamos as coisas por modos muito semelhantes.
Embora grandes meditadores consigam vislumbrar outros reinos, nós não temos prova absoluta sequer de que o nosso mundo fenomênico humano exista além das nossas mentes individuais e coletivas. Ainda assim, da mesma forma que tomamos nossos sonhos como reais enquanto estamos dormindo, consideramos real o nosso reino humano. E os cinco outros reinos são tão reais para os seres que neles existem quanto a nossa experiência é para nós. O inferno parece tão real para um ser do inferno, o reino dos fantasmas famintos tão real para um fantasma faminto, quanto o reino humano parece para nós. Em última análise, o sofrimento provém não dos fenômenos desses reinos, mas do fato dos seres conferirem realidade a eles.
Assim, não é contraditório dizer que nossa experiência é real ou verdadeira, e ao mesmo tempo falsa. Nem é contraditório dizer o mesmo de qualquer outro reino. Se insistimos que o reino humano é real, então todos os demais reinos são reais, porque os seres que neles existem os experimentam como reais.
O sofrimento mais agudo de todos os reinos é aquele dos dezoito infernos, o reflexo e as conseqüências kármicas da raiva e do ódio, e de sua expressão em pensamentos, palavras e ações. Os seres aí padecem de calor e frio extremos. Nos infernos quentes, chamas do comprimento de um antebraço cobrem toda a superfície. Com cada passo, o pé se queima. Quando é levantado, se cicatriza; então, com o próximo passo, se queima novamente. O fogo arde com uma intensidade inconcebível. Diz-se que as chamas produzidas pela madeira pura de sândalo são sete vezes mais quentes do que o fogo comum, e sete vezes mais quente ainda será o fogo que consumirá o universo no final desta era; mas o fogo dos infernos quentes é sete vezes ainda mais quente do que este último.
O corpo dos seres dos infernos não é igual ao nosso. Nosso corpo de carne e osso possui um certo nível de tolerância; consegue suportar ou sentir dor somente até um determinado ponto. Mas os seres dos infernos, cujo corpo é tão sensível quanto um globo ocular, não desmaiam, perdem consciência nem morrem até que seu karma termine.
Em um dos infernos, imagens de todos aqueles seres que matamos — quer seja um veado, um inseto ou uma pessoa — surgem tão grandes quanto montanhas e nos esmagam entre elas. À medida que se separam, nosso corpo se recompõe uma vez mais, apenas para ser novamente esmagado, e assim indefinidamente. Em um outro inferno, os seres nascem com uma risca que atravessa o comprimento de seu corpo, ao longo da qual são cortados ao meio por uma serra. As duas metades se restabelecem e se unem, apenas para ser cortadas de novo, e assim sucessivamente.
Nos infernos frios, o meio ambiente gelado, inóspito, brutal, não oferece nem roupa nem abrigo. Se os seres humanos adormecem e morrem quando ficam congelados, os seres neste reino de enregelar os ossos não morrem até que seu karma se exaura, por mais congelados que fiquem. Seus corpos racham como carne deixada por muito tempo num congelador.
Centenas de vezes mais horripilante do que qualquer outro reino, o inferno é simplesmente o pior lugar para se estar.
Os fantasmas famintos padecem de imensa fome, sede e exposição ao tempo. Novamente, este reino não é simplesmente uma metáfora, mas muito real para os seres aprisionados nele, pois vivem constantemente esfomeados e ardendo de sede. Os seus próprios corpos são construídos de modo a criar dor. Têm uma cabeça enorme, imensa como uma montanha, e barriga do tamanho de um vale. Seu pescoço é tão diminuto quanto um pequeno fio do rabo de um cavalo, de modo que nada pode passar pela garganta. Seus membros são tão descarnados que não conseguem sustentar o corpo, e é extremamente difícil para eles se movimentar e procurar comida. A maior parte do tempo, os fantasmas famintos podem só ficar deitados de bruços e passar fome. Se chegam a encontrar alguma comida, geralmente é imunda ou apodrecida, e, se conseguem engoli-la, vira fogo em seu estômago.
Ganância e apego extremos são as causas kármicas do nascimento no reino dos fantasmas famintos. Enquanto o karma que sustenta sua existência não se exaure, os fantasmas famintos são incapazes de morrer, apesar de sua agonia, que pode durar milhares de anos.
No reino animal, o sofrimento resulta principalmente do ataque de uma espécie pela outra. Dado que os animais constantemente buscam matar e comer-se uns aos outros, vivem sob perpétuo medo. Os animais selvagens não comem um único bocado de capim sem olhar de um lado para outro, para se certificar de que estão seguros. O tratamento rude dos animais domesticados pelos humanos também causa grande dor e sofrimento. Os animais possuem liberdade muito limitada; por maior e mais potente que seja o elefante, por mais belo que seja o pavão, não possuem a capacidade de refletir sobre alguma coisa e então agir. Este karma provém de ações não-virtuosas motivadas por ignorância e estupidez.
Ações virtuosas manchadas por todos os venenos da mente, sem predominância de qualquer um deles, produzem renascimento como ser humano. Embora, como vimos, as condições deste reino sejam relativamente bem afortunadas, não obstante conhecemos o sofrimento ligado ao nascimento, velhice, doença e morte, ligado à guerra, violência, fome e, mais sutilmente, ao desejo não-preenchido.
Os semideuses têm um meio ambiente agradável, mas são atormentados por inveja e espírito de competição e, assim, estão sempre envolvidos com brigas, derramamento de sangue e guerras. Renascimento como semideus é produzido por ações virtuosas manchadas por inveja e competição, ações que trazem ajuda mas que são praticadas apenas para demonstrar que alguém está fazendo mais do que o outro, ou que é superior ao outro.
No reino dos deuses mundanos, o karma da virtude manchado pelo orgulho produz condições maravilhosas. Os deuses mundanos nunca se sujam, nunca cheiram mal, nunca têm que lavar sua roupa. As flores que ornamentam seus corpos conservam-se frescas para sempre — até sete dias antes de sua morte. Então suas flores se deterioram, seus corpos ficam sujos e começam a exalar odor, e eles sabem que logo morrerão. Por sete dias — o equivalente a trezentos e cinqüenta anos humanos — passam pela angústia de saber em que reino inferior vão cair. Por fim, quando o karma que sustenta sua existência se exaure, os seres do reino dos deuses morrem.
Os deuses do reino da forma e da não-forma vivem em um tipo rudimentar de samadhi ou absorção meditativa. Renascimento no reino da não-forma é produzido por apego à estabilidade, renascimento no reino da forma por apego à clareza, e renascimento como deus no reino do desejo por apego ao prazer de certos estados sublimes de felicidade. Embora esses renascimentos não sejam terríveis, ainda são samsáricos. Mais cedo ou mais tarde, uma vez exaurido o karma positivo que mantém aquela existência, a embriaguez desses seres terminará e eles renascerão em algum reino inferior, mais doloroso.
Quando tomamos consciência do sofrimento e das limitações da existência cíclica, passamos a ter motivação para encontrar uma saída, da mesma forma que, quando nos damos conta de que estamos doentes, buscamos remédio. Ao compreender que a virtude e a não-virtude determinam se a nossa experiência será de felicidade ou de tristeza, prazer ou dor, cabe-nos uma escolha: podemos mudar as nossas ações e cultivar qualidades virtuosas, buscando liberação para nós mesmos e para todos os seres, ou podemos continuar a criar não-virtude, perpetuando sofrimento sem fim.
Quando realmente começamos a compreender o sofrimento, começamos a ver o samsara como um pântano pútrido dentro do qual caímos. Nosso único desejo passa a ser o de libertarmos a nós mesmos e aos outros. Essa atitude de buscar liberação para nós e os para outros é uma qualidade que denominamos renúncia, um elemento crucial para nosso ingresso no caminho espiritual.
Através da contemplação contínua da nossa existência humana preciosa, da morte e impermanência, do karma e sofrimento, a mente se volta para o dharma. Se sua visão consegue atravessar os três venenos, o combustível do samsara, de modo que eles deixam de dominar sua mente, então essas quatro contemplações fizeram seu trabalho. Se não, prossiga refletindo sobre os quatro pensamentos até que se tornem parte de sua pessoa, até que eles tenham fundamentalmente transformado sua visão do mundo.
(Chagdud Tulku Rinpoche. Portões da Prática Budista.
Traduzido por Manoel Vidal, revisado por Cinthia Sabbado, Marta Rocha e Maurício Sabaddo.
Três Coroas: Rigdzin, 2000. Pág. 93-101. )
O resultado de todas as ações que praticamos forma a trama da nossa vida, como a de um tapete: cada fio, cada detalhe. Cada um de nós continua a tecer diferentes realidades físicas e ambientais, amarrando-nos mais fundo aos ciclos de sofrimento. Nossa experiência depende do nosso karma, que produz graus variados de enganos e ilusões. Se os venenos da mente são agudos, experimentamos uma realidade muito dolorosa, infernal. Se os venenos se reduzem, nossa realidade se torna menos severa, mais agradável.
O Buddha falou sobre sofrimento do mesmo modo que falaríamos sobre doença a uma pessoa enferma, simplesmente para ajudá-la a compreender que não está bem, que há algo de errado. Se não houvesse cura para o sofrimento, não haveria porque discuti-lo. Mas o fato de que a cura existe faz com que seja de capital importância reconhecermos o sofrimento como fundamental; podemos, assim, começar a encontrar essa cura.
Há três tipos de sofrimento. O primeiro é o sofrimento que se sobrepõe ao sofrimento. Uma coisa ruim acontece em cima de outra, e parece não haver justiça alguma no processo. Quando você pensa que a situação em que está não pode ficar pior, ela fica. Você perde dinheiro, depois um parente, depois a juventude — há inúmeras maneiras pelas quais sofremos. O segundo tipo é o sofrimento da mudança. Nada é confiável ou consistente. Por maior que seja a nossa esperança de ter uma base sólida sobre a qual nos apoiarmos, tudo aquilo com o que contamos sempre se corrói, criando grande doŲ. O terceiro é o sofrimento que tudo permeia. Da mesma forma que, quando você espreme uma semente de gergelim, constata que ela está permeada de óleo, pode parecer que a nossa vida seja feliz, mas, quando somos espremidos, sofremos. Tão certo quanto o fato de que nascemos é o fato de que iremos ficar doentes, envelhecer e morrer.
Dentro do samsara, há incontáveis seres cujo sofrimento é, de longe, maior do que o nosso. Noventa e cinco por cento deles experimentam uma realidade brutal. A vida de apenas cinco por cento — humanos, semideuses e deuses mundanos — é relativamente bem afortunada. Entretanto, nós humanos freqüentemente nos lamentamos da nossa existência, queixando-nos amargamente dos nossos terríveis problemas. Nunca nos sentiríamos assim se tivéssemos uma apreciação do grau tremendo de sofrimento que existe em outros reinos. A pior de todas as experiências humanas é ainda mil vezes mais tolerável do que aquilo que os seres de menor sofrimento nos reinos inferiores têm que suportar. Seu sofrimento é tão lancinante que mal podemos concebê-lo; sua duração é insondável. Para alguns seres nem mesmo a morte serve de escape, até que se passem centenas de milhares de anos, às vezes eras inteiras.
A maioria dos seres nesses reinos não dispõem de tempo para ajudar a si próprios. Seu sofrimento permanece tão intenso que não têm um momento, uma oportunidade, para meditar ou para examinar a si mesmos ou sua vida de um ângulo diferente. Outros seres, em reinos superiores, vivem embriagados de prazer. Um falso contentamento permite-lhes se assentar em um estado de inatividade. Quando sua longa vida inevitavelmente chega ao fim, experimentam terrível sofrimento, pois não usaram suas amplas oportunidades para criar condições para sua felicidade futura.
A idéia de que podemos vivenciar reinos de sofrimento que chamamos de infernos deixa muitas pessoas céticas ou enraivecidas. Elas não acreditam em inferno; pensam que este conceito não passa de uma tática que algumas religiões empregam para assustar e controlar as pessoas. Em certo sentido, é verdade que o inferno não existe. Se fizermos uso de toda a tecnologia do mundo para tentar chegar ao centro da Terra, nunca acharíamos o inferno. No entanto, muitos seres estão sofrendo no reino dos infernos neste exato momento.
O inferno é o reflexo dos enganos e fantasias da mente, dos pensamentos e intenções raivosos, e das palavras e ações nocivas que eles produzem. Se não forem controlados, não há como deixarmos de vivenciar o inferno. Os praticantes precisam ser cuidadosos. Alguns podem pensar, "Minha meditação é tão profunda que eu não tenho que me preocupar com o karma." Mas as repercussões das visões enganosas são infalíveis, e para se renascer no inferno não é preciso de muito engano.
Algumas pessoas experimentam o inferno mesmo enquanto contam com um corpo humano. Muitas delas ocupam nossos hospitais. Há pessoas que são atormentadas pela idéia de que alguém está tentando assassiná-las ou arrancar sua carne. Há algumas que têm a experiência de estar sendo comidas vivas ou estar presas em um incêndio. Poderíamos estar sentados no mesmo quarto que elas, e não enxergar nada do que sofrem. Ao mesmo tempo, podemos estar bem ao lado de um grande meditador que vivencia o céu, a terra pura, sem que nós mesmos enxerguemos isso.
O inferno e o céu, na verdade, não estão tão longe um do outro. Entender isso é um pouco capcioso, já que a experiência do céu é muito diferente da do inferno. Mas isso ganha sentido se considerarmos o exemplo de uma substância simples como a água. Para os humanos, a água é crucial para a manutenção da vida; para os peixes, é o seu meio ambiente; para os deuses mundanos, uma substância semelhante à ambrósia; para os fantasmas famintos, sangue e pus; para os seres dos infernos, lava derretida. Não é que a substância em si varie de um caso para outro, mas, sim, que se modifica a percepção e a experiência que seres diferentes têm dela. Da mesma forma que nossa visão se altera quando pomos óculos com graus diferentes, nossa experiência da realidade é inteiramente condicionada por nossa percepção, a qual é determinada pela extensão dos nossos enganos e fantasias.
Em escala cósmica, as experiências das seis classes de seres nos três reinos da existência (os reinos do desejo, da forma e da não-forma) — a existência cíclica em seu todo — constituem dramas coletivos que se desenrolam como expressão do karma grupal desses seres. Quando vemos um filme projetado numa tela, conferimos a ele uma certa medida de realidade, e por essa razão somos afetados por ele. Ficamos contrariados, radiantes, aterrorizados ou enraivecidos por aquilo que vemos. Não importa que conheçamos a origem do cinema ou compreendamos como ele funciona. Quando assistimos a um filme, ele nos modifica ao evocar determinados estados emocionais. Podemos dar um passo atrás e dizer que, em termos últimos, não há nada ali, é apenas um filme. Mas na maior parte do tempo permanecemos totalmente absorvidos por aquilo a que estamos assistindo. Se um grupo de pessoas se sentar diante da mesma tela de cinema, serão afetadas mais ou menos da mesma maneira. Uma comédia vai deixá-las alegres; um filme de terror irá amedrontá-las. Como seres humanos que compartilham uma realidade coletiva denominada reino do desejo, verificamos que os impulsos mais fortes em nossa mente são o desejo e o apego, e enxergamos as coisas por modos muito semelhantes.
Embora grandes meditadores consigam vislumbrar outros reinos, nós não temos prova absoluta sequer de que o nosso mundo fenomênico humano exista além das nossas mentes individuais e coletivas. Ainda assim, da mesma forma que tomamos nossos sonhos como reais enquanto estamos dormindo, consideramos real o nosso reino humano. E os cinco outros reinos são tão reais para os seres que neles existem quanto a nossa experiência é para nós. O inferno parece tão real para um ser do inferno, o reino dos fantasmas famintos tão real para um fantasma faminto, quanto o reino humano parece para nós. Em última análise, o sofrimento provém não dos fenômenos desses reinos, mas do fato dos seres conferirem realidade a eles.
Assim, não é contraditório dizer que nossa experiência é real ou verdadeira, e ao mesmo tempo falsa. Nem é contraditório dizer o mesmo de qualquer outro reino. Se insistimos que o reino humano é real, então todos os demais reinos são reais, porque os seres que neles existem os experimentam como reais.
O sofrimento mais agudo de todos os reinos é aquele dos dezoito infernos, o reflexo e as conseqüências kármicas da raiva e do ódio, e de sua expressão em pensamentos, palavras e ações. Os seres aí padecem de calor e frio extremos. Nos infernos quentes, chamas do comprimento de um antebraço cobrem toda a superfície. Com cada passo, o pé se queima. Quando é levantado, se cicatriza; então, com o próximo passo, se queima novamente. O fogo arde com uma intensidade inconcebível. Diz-se que as chamas produzidas pela madeira pura de sândalo são sete vezes mais quentes do que o fogo comum, e sete vezes mais quente ainda será o fogo que consumirá o universo no final desta era; mas o fogo dos infernos quentes é sete vezes ainda mais quente do que este último.
O corpo dos seres dos infernos não é igual ao nosso. Nosso corpo de carne e osso possui um certo nível de tolerância; consegue suportar ou sentir dor somente até um determinado ponto. Mas os seres dos infernos, cujo corpo é tão sensível quanto um globo ocular, não desmaiam, perdem consciência nem morrem até que seu karma termine.
Em um dos infernos, imagens de todos aqueles seres que matamos — quer seja um veado, um inseto ou uma pessoa — surgem tão grandes quanto montanhas e nos esmagam entre elas. À medida que se separam, nosso corpo se recompõe uma vez mais, apenas para ser novamente esmagado, e assim indefinidamente. Em um outro inferno, os seres nascem com uma risca que atravessa o comprimento de seu corpo, ao longo da qual são cortados ao meio por uma serra. As duas metades se restabelecem e se unem, apenas para ser cortadas de novo, e assim sucessivamente.
Nos infernos frios, o meio ambiente gelado, inóspito, brutal, não oferece nem roupa nem abrigo. Se os seres humanos adormecem e morrem quando ficam congelados, os seres neste reino de enregelar os ossos não morrem até que seu karma se exaura, por mais congelados que fiquem. Seus corpos racham como carne deixada por muito tempo num congelador.
Centenas de vezes mais horripilante do que qualquer outro reino, o inferno é simplesmente o pior lugar para se estar.
Os fantasmas famintos padecem de imensa fome, sede e exposição ao tempo. Novamente, este reino não é simplesmente uma metáfora, mas muito real para os seres aprisionados nele, pois vivem constantemente esfomeados e ardendo de sede. Os seus próprios corpos são construídos de modo a criar dor. Têm uma cabeça enorme, imensa como uma montanha, e barriga do tamanho de um vale. Seu pescoço é tão diminuto quanto um pequeno fio do rabo de um cavalo, de modo que nada pode passar pela garganta. Seus membros são tão descarnados que não conseguem sustentar o corpo, e é extremamente difícil para eles se movimentar e procurar comida. A maior parte do tempo, os fantasmas famintos podem só ficar deitados de bruços e passar fome. Se chegam a encontrar alguma comida, geralmente é imunda ou apodrecida, e, se conseguem engoli-la, vira fogo em seu estômago.
Ganância e apego extremos são as causas kármicas do nascimento no reino dos fantasmas famintos. Enquanto o karma que sustenta sua existência não se exaure, os fantasmas famintos são incapazes de morrer, apesar de sua agonia, que pode durar milhares de anos.
No reino animal, o sofrimento resulta principalmente do ataque de uma espécie pela outra. Dado que os animais constantemente buscam matar e comer-se uns aos outros, vivem sob perpétuo medo. Os animais selvagens não comem um único bocado de capim sem olhar de um lado para outro, para se certificar de que estão seguros. O tratamento rude dos animais domesticados pelos humanos também causa grande dor e sofrimento. Os animais possuem liberdade muito limitada; por maior e mais potente que seja o elefante, por mais belo que seja o pavão, não possuem a capacidade de refletir sobre alguma coisa e então agir. Este karma provém de ações não-virtuosas motivadas por ignorância e estupidez.
Ações virtuosas manchadas por todos os venenos da mente, sem predominância de qualquer um deles, produzem renascimento como ser humano. Embora, como vimos, as condições deste reino sejam relativamente bem afortunadas, não obstante conhecemos o sofrimento ligado ao nascimento, velhice, doença e morte, ligado à guerra, violência, fome e, mais sutilmente, ao desejo não-preenchido.
Os semideuses têm um meio ambiente agradável, mas são atormentados por inveja e espírito de competição e, assim, estão sempre envolvidos com brigas, derramamento de sangue e guerras. Renascimento como semideus é produzido por ações virtuosas manchadas por inveja e competição, ações que trazem ajuda mas que são praticadas apenas para demonstrar que alguém está fazendo mais do que o outro, ou que é superior ao outro.
No reino dos deuses mundanos, o karma da virtude manchado pelo orgulho produz condições maravilhosas. Os deuses mundanos nunca se sujam, nunca cheiram mal, nunca têm que lavar sua roupa. As flores que ornamentam seus corpos conservam-se frescas para sempre — até sete dias antes de sua morte. Então suas flores se deterioram, seus corpos ficam sujos e começam a exalar odor, e eles sabem que logo morrerão. Por sete dias — o equivalente a trezentos e cinqüenta anos humanos — passam pela angústia de saber em que reino inferior vão cair. Por fim, quando o karma que sustenta sua existência se exaure, os seres do reino dos deuses morrem.
Os deuses do reino da forma e da não-forma vivem em um tipo rudimentar de samadhi ou absorção meditativa. Renascimento no reino da não-forma é produzido por apego à estabilidade, renascimento no reino da forma por apego à clareza, e renascimento como deus no reino do desejo por apego ao prazer de certos estados sublimes de felicidade. Embora esses renascimentos não sejam terríveis, ainda são samsáricos. Mais cedo ou mais tarde, uma vez exaurido o karma positivo que mantém aquela existência, a embriaguez desses seres terminará e eles renascerão em algum reino inferior, mais doloroso.
Quando tomamos consciência do sofrimento e das limitações da existência cíclica, passamos a ter motivação para encontrar uma saída, da mesma forma que, quando nos damos conta de que estamos doentes, buscamos remédio. Ao compreender que a virtude e a não-virtude determinam se a nossa experiência será de felicidade ou de tristeza, prazer ou dor, cabe-nos uma escolha: podemos mudar as nossas ações e cultivar qualidades virtuosas, buscando liberação para nós mesmos e para todos os seres, ou podemos continuar a criar não-virtude, perpetuando sofrimento sem fim.
Quando realmente começamos a compreender o sofrimento, começamos a ver o samsara como um pântano pútrido dentro do qual caímos. Nosso único desejo passa a ser o de libertarmos a nós mesmos e aos outros. Essa atitude de buscar liberação para nós e os para outros é uma qualidade que denominamos renúncia, um elemento crucial para nosso ingresso no caminho espiritual.
Através da contemplação contínua da nossa existência humana preciosa, da morte e impermanência, do karma e sofrimento, a mente se volta para o dharma. Se sua visão consegue atravessar os três venenos, o combustível do samsara, de modo que eles deixam de dominar sua mente, então essas quatro contemplações fizeram seu trabalho. Se não, prossiga refletindo sobre os quatro pensamentos até que se tornem parte de sua pessoa, até que eles tenham fundamentalmente transformado sua visão do mundo.
(Chagdud Tulku Rinpoche. Portões da Prática Budista.
Traduzido por Manoel Vidal, revisado por Cinthia Sabbado, Marta Rocha e Maurício Sabaddo.
Três Coroas: Rigdzin, 2000. Pág. 93-101. )
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